Impressões sobre o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa 


Deparei-me há uns dias com uma página no Facebook de contestação ao tão falado Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (AOLP) e, quando me preparava para aderir, vi um link para o documento propriamente dito. Até hoje, devo ter assinado uma meia-dúzia de petições contra o referido acordo mas a verdade é que nunca o tinha lido e convenhamos que é sempre melhor termos um conhecimento concreto sobre os assuntos relativamente aos quais emitimos uma opinião. E foi assim, que dei por mim a navegar, com alguma atenção, pelas 31 páginas do documento. A princípio preocupava-me o facto de não estar familiarizado com termos como ênclise, tmese e palavras paroxítonas mas a verdade é que o texto se deixa ler relativamente bem. As pessoas que sabem que, há uns anos atrás, me dei ao trabalho de ler a Constituição da República Portuguesa quase toda, poderão desconfiar deste juízo de valor mas a verdade é que o AOLP pode chegar a ser interessante. Reconheço também que as palavras em geral me fascinam, abrir um dicionário corresponde a uma viagem no tempo e na história em que cada palavra tem uma personalidade própria, uma textura, uma cara, uma cor, até um cheiro e que só quando é dita se dá a conhecer inteiramente[1]; sozinhas ou acompanhadas por outras, geram imagens e sensações únicas. Assim sendo, talvez nem todas as pessoas tenham o mesmo interesse em folhear o Acordo e por este motivo, aqui partilho as minhas impressões, sem quaisquer ambições de erudição, destinadas portanto apenas a pequenos e médios intelectuais[2].


A primeira, e sem querer antecipar conclusões, é que o AOLP foi assinado em 1990 por pessoas com nomes tais como Chiarelli, Hopffer, Honwana e, surpresa… Pedro Santana Lopes, enquanto Secretário de Estado da Cultura; é portanto, uma espécie de preparação para o que se segue.


Muito apropriadamente, à semelhança do que se faz na Matemática em que se definem os valores de um domínio ou num programa informático em que se declaram as variáveis à cabeça, o Acordo começa por definir as 26 letras do alfabeto e, logo aqui, temos umas pequenas surpresas: a letra “k” (capa) pode também ser lida como “cá”, é bom saber, e a letra “w” está descrita como “dáblio”; a princípio pareceu-me que poderia ser resultado de uma concessão a pressões do Sr. Pinto da Costa para legalizar a sua pronúncia do Norte mas depois lembrei-me que no Brasil gostam de abrir as vogais. Fiquei mais descansado por logo abaixo ser informado que “os nomes das letras acima sugeridos não excluem outras formas de as designar”. Inicia-se portanto o acordo num contexto de liberalidade.

 

Esta suposição confirma-se imediatamente a seguir pois estamos autorizados a grafar buganvília, buganvílea ou mesmo bougainvíllea.

 

Quanto ao “h” inicial e final, tudo pacífico. Já ninguém escrevia herva há muito tempo e fico contente por legitimarem hum! que vou passar a usar nos chats em vez de hmmm.

 

Uma dimensão interessante deste acordo é que se fica com a sensação de termos “ganho” uma quantidade enorme de novos vocábulos que nunca se sabe quando nos poderão vir a ser úteis: jenipapo, jequiri, jequitibá, jerimum, jiquipanga, jiquiró, jiquitaia, jirau, jiriti, jitirana. Conhecia jiripiti, mas penso que é outra coisa, ou será xiripiti?

 

Quanto à problemática dos “s”, “ss”, “c”, “ç” e “x”, está salva a Pátria, não me dei conta de qualquer barbaridade. Continuaremos a escrever esconso, abadessa, percevejo, pança e auxílio. Enguiço também, que é uma palavra que uso frequentemente. Confesso que não fui confirmar como se escrevia anteriormente quiçaba, quiçaça, quiçama ou quiçamba. Apenas me surpreendeu a palavra “inexperto” que não conhecia e que pode também vir a ser muito útil. Porém, esta pacífica secção do documento tem uma outra função importante que é a de nos preparar, como quem não quer a coisa, para algumas problemáticas que se antevêem: é que a propósito da letra “x”, é mencionada a palavra “inexato”. Ui, nós sabemos que se escreve com “x”, mas que é feito do “c”? Se calhar está na altura de nos começarmos a preocupar. Porém, o último parágrafo menciona “guizo”, uma das minhas palavras predilectas e fico portanto com uma sensação de algum alívio. Vizela também pode dormir descansada.

 

Conforme se antevia, a verdadeira crise começa com as “sequências consonânticas”. Malditas! E eis que se dá, desde logo, início a uma autêntica galeria de horrores: ação, afetivo, batizar, coleção, diretor, ótimo. Ótimo, o caraças. A seguir ao “c”, a próxima vítima é o “p”: que assumpção passe a assunção, ainda vá que não vá, agora peremptório a perentório e pior do que isso, sumptuoso a suntuoso e consequentemente sumptuosidade a suntuosidade, é que é catastrófico. Haverá pessoas que não perceberam que as palavras têm uma dignidade que não lhes pode ser retirada? A palavra sumptuosidade nunca mais poderia ser usada porque suntuosidade soa a uma derivação de unto, o que é um contra-senso. Alegam que os “pt” se eliminam nos “casos em que são invariavelmente mudos nas pronúncias cultas da língua”. Ora, não me parece que seja o caso, e mesmo que fosse. Concerteza que alguém pode perguntar: será que a palavra podia viver independentemente da sua grafia? Claro que podia, mas não era a mesma coisa…

Salvam-se as palavras, essas privilegiadas (we few, we happy few, we band of brothers[3]), que tiveram a sorte de as suas “sequências interiores”, serem “proferidas invariavelmente nas pronúncias cultas da língua”: convicto, pacto, erupção e rapto. Não é justo, o eucalipto não merecia essa distinção; preferimos a versão alentejana de eucalitro.

 

O “bd”, “bt”, “gd”, “mn” e “tm” escaparam à pena de amputação, mais uma vez, por serem proferidos pelos cultos: súbdito, subtil, amígdala, amnistia e aritmética.

 

Ao passarmos às vogais átonas, podemos temporariamente voltar a respirar. Ficam definitivamente fixadas as grafias crânio (em vez de crâneo), quase (em vez de quási) e por razões idênticas pátio e lampião. Não me posso esquecer de adicionar lampião à minha lista de palavras preferidas.

 

Na guerra entre o “o” e o “u” também o bom-senso prevaleceu: há muito tempo que “água” e “tabuada” tinham os seus direitos bem estabelecidos; “engolir” e “femoral” viram a sua superioridade confirmada. Os verbos com flexões rizotónicas também não se podem queixar: devanear, hastear e semear.

 

Segue-se um período de boa-vontade. Ficamos a saber o modo como se escreve “farnéis” e somos advertidos em relação a “farneizinhos”. Lençóis, mas lençoizinhos, calminha, nada de abusar e pôr um acento no “o”. A benevolência, nesta zona dos ditongos, é a marca principal; cãibra, oraçõezinhas, homenzarrão, virgens, desdéns e vintenzinho. Uma alegria. Até a palavra “sói” que ela própria se julgava morta e enterrada foi trazida à luz do dia e oferecida uma nova oportunidade.

 

Só quando chegamos às palavras oxítonas é que percebemos que a liberalidade e as benesses que nos foram anteriormente concedidas têm um preço. Em particular as terminadas em “e”. Nesta altura vem ao de cima a nossa veia intolerante, ainda que as correspondentes grafias lusitanas sejam aceites (também era o que faltava). Bidê? Crochê? Purê, caratê e metrô? Estamos a brincar, ou quê? O nenê e o ponjê que se lixem agora, cocô? Haja consideração, estas palavras são simplesmente inaceitáveis na língua de Camões, Pessoa, Cesário Verde e Alexandre O’Neill.

 

Obrigadinho por tirarem os acentos de enjoo, de homem e de Tejo; há por aí alguém que julgue que ainda estamos no séc. XVIII, é?

 

As paroxítonas, revelam-se um tema complexo. Vemos a confirmação de dólmen, beribéri e fórum mas somos obrigados a conviver com sêmen e pênis. Isto pode ter consequências sérias… “Vômer” também, mas como não sabemos o seu significado, estamos tranquilos. Há uma sensação clara de perda quando vemos palavrinhas inocentes como “bóia” serem mandatoriamente mutiladas para “boia”, mas o mais grave, é quando um dia quisermos descrever os feitos dos portugueses de antanho como actos, perdão, atos heroicos; que vergonha.

 

É facultativo o acento em “amámos”. Quer dizer que uma vez que amámos, amaremos para sempre? Bom, talvez se compreenda neste caso particular, mas quanto a louvámos? Não se entende a necessidade desta mudança ortográfica.

 

Âmbar e ânus estão safos – bômbix e sua variante bômbice não interessam nada.

 

Por volta da página 12, começamos a olhar para a vogal “e” como estando a ser alvo de uma perseguição; creem e preveem juntam-se à lista das vítimas.

 

Esta suspeita confirma-se quando olhamos para o tratamento dado às vogais “i” e “u”. Tudo calmo prós lados de Coimbra, ruim, rainha, juiz e igualmente para Luísa, egoísmo, cafeína e graúdo. Nem sei como é que a faísca e a faúlha sobreviveram. A única explicação que encontro é que tenha havido uma espécie de troca de prisioneiros com Piauí, teiú, tuiuiú e cauim.

 

Também as palavras proparoxítonas foram poupadas. Culpados óbvios como: a língua, o míope, o músico, o trôpego, o sonâmbulo, o lôstrego, o árabe, o sôfrego (este principalmente), o excêntrico, o lôbrego e enfim, a nêspera, saíram incólumes.

 

Nos casos em que as personalidades eruditas de ambos os lados do Atlântico falam de forma diferente, imperou novamente a liberalidade: fenómeno e fenômeno são ambos aceites. No entanto, quando referem fémea e fêmea não se percebe bem onde querem chegar: haverá algum lugar remoto nesse vasto território da língua portuguesa em que uma pessoa erudita diga fémea? Ténue e génio, sim, mas fémea… Ou então, terá sido esta a parte em que o Dr. Pedro Santana Lopes marcou a sua posição dizendo: eu cá, gosto de lhes chamar fémeas e elas também adoram.

 

O AOLP tem um lado instrutivo: não sabia que àquele, àquilo e àqueloutro se escreviam com acento grave.

 

O Acordo está organizado em “Bases”. Na Base XIII deparamo-nos com a crónica de uma morte anunciada. Advérbios de modo acabados em “mente” não têm acentos, já nos tínhamos habituado à ideia. Também não choramos palavritas menores: o bebezito, o heroizito, a cafezada e o pessegozito definitivamente não vencem acento.

 

Para compreendermos as várias dimensões em jogo temos que ter a capacidade de nos colocarmos na posição dos nossos adversários e é quando chegamos ao capítulo do trema que a nossa perspectiva pode mudar. É que, começamos a dar conta que não são só os lusitanos a abdicar dos seus princípios. Oh gente, é que agora os nossos irmãos brasileiros já não vão mais poder usar o trema (há excepções): saudade, reunião, cinquenta, tranquilo e até mesmo esmiuçar, parecem palavras escritas correctamente, mas só para nós do lado de cá. Outras como abaiucado, auiqui, caiuá, cauixi e piauiense, não conseguimos avaliar a indignação que a ausência do trema possa provocar. Mas sim, neste capítulo, podemos apreciar, ainda que levemente, o sabor doce da vitória.

 

O hífen está vivo e recomenda-se. Segunda-feira, tenente-coronel, rainha-cláudia, arcebispo-bispo, és-sueste e alcaide-mor estão salvaguardados e estamos portanto solidários com o mato-grossense, o porto-alegrense e mesmo o afro-luso-brasileiro. Inversamente, o paraquedista e a madressilva mantêm a sua honra, ainda que não entendam bem a que se deve a companhia do pontapé. Arriscamos a dizer que nesse lugar recôndito onde se diz fémea, talvez se escreva, mas apenas até agora, ponta-pé. Topónimos, espécies botânicas e zoológicas, advérbios começados por mal ou bem, palavras com aquém e além e muitas outras peculiaridades da língua portuguesa foram todos respeitados. É um prazer ver coexistir o Grão-Pará com Montemor-o-Novo, a fava-de-santo-inácio com a bênção-de-deus (sim, com acento, é uma erva brasileira), o bem-humorado com o mal-afortunado e o recém-casado com o sem-vergonha. E naturalmente que a sala de jantar, a cor de café com leite, o fim de semana e o cão de guarda nunca invocaram para si próprios direitos de nobreza que o hífen confere. Neste capítulo, o Acordo foi tão benevolente que até o percurso Lisboa-Coimbra-Porto e a ligação Angola-Moçambique que ressoam inconfundivelmente a Estado Novo, foram mantidos.

 

Quando achávamos que o maravilhoso mundo dos hífenes tinha terminado, eis que somos surpreendidos com novas dimensões, provas inequívocas da grandeza da nossa língua, mais concretamente nas “formações por prefixação, recomposição e sufixação” bem como nas misteriosas e já referidas ênclise e tmese. Segue-se pois uma arca de diamantes todos perfeitamente lapidados de acordo com a tradição mais vernácula: o co-herdeiro e o contra-almirante, a arqui-irmandade e o hiper-requintado, o sota-piloto e até o vizo-rei. A pan-negritude apanha aqui uma boleia descarada, mas ninguém se incomoda.

 

Neste espaço fabuloso, também os sufixos de origem tupi-guarani ocupam o seu lugar à mesa: amoré-guaçu, anajá-mirim, andá-açu, capim-açu. Lindo! Anjos rejubilam, era briluz[4]. Para quem leu o 2666, o Acordo nesta altura dá-nos a sensação vertiginosa de sermos sugados para dentro do mundo contagiantemente louco do Bolaño.

 

Voltando à normalidade. Como por vezes acontece, coisas misteriosas perdem o seu encanto quando dadas a conhecer; afinal os capítulos da ênclise e da tmese limitam-se a consagrar expressões como: amá-lo, dá-se, deixa-o, partir-lhe, amá-lo-ei ou enviar-lhe-emos. Por alguma razão, estes exemplos, transpostos directamente do Acordo, parecem constituir um romance minimalista; afinal é capaz de ficar aqui qualquer coisa por esclarecer, ou então é ainda o Bolaño a fazer efeito.

 

E em seguida, uma outra glória, o apóstrofo. O respeito pelos pergaminhos da língua portuguesa foi impecável. Sant’Ana, Nun’Álvares e Pedr’Eanes juntamente com pau-d'água, pau-d'alho, pau-d'arco e pau-d'óleo dão uma ideia da abrangência, da pluralidade e da elevação desta língua de tantos séculos e continentes. Mais uma vez, o Acordo é instrutivo ao enunciar as designadas uniões perfeitas (que por este motivo e com muita propriedade, não levam apóstrofo): dessoutro, naqueloutras, dalhures e o seu expoente máximo, doravante.

 

Estávamos nós animados, já quase prontos a conceder algum mérito ao AOLP, eis senão quando, aparece um tema que, mesmo antes de o lermos, quiçá influenciados pelos rumores que correm, nos causa alguma apreensão: “Das minúsculas e maiúsculas”.

 

Começa logo mal: outubro e primavera. Seguidamente, norte e sul. Suspeita-se aqui de algum favorecimento, porque Matemática, Português e Línguas e Literaturas Modernas, ainda que não recomendado, podem manter opcionalmente as maiúsculas.

 

No geral, apesar de alguns desgostos que este capítulo nos causa, concluímos que nem tudo está perdido. Mantém-se o Natal, a Páscoa, Todos os Santos e até mesmo o Ramadão, bem como o incontornável “Instituto de Pensões e Aposentadorias da Previdência Social”.

 

Já próximos do fim deste calvário há ainda lugar para a divisão silábica, que sendo um tema que não serve para nada, podemos sempre aproveitar para aprender qualquer coisa. Confirmamos de uma vez por todas que o plural de sacristão é sacristães e que, já agora, curiosamente, só tem duas sílabas, a saber, sacris- tães.

 

O Acordo propriamente dito, termina enunciando os direitos inalienáveis adstritos à assinatura do nosso nome, conforme ao costume. Bonito. O mesmo se aplica a nomes de firmas, sociedades, marcas e títulos.

 

Da página 22 até à última, a 31, estende-se uma nota explicativa do acordo, de onde podemos retirar alguma informação interessante.

 

A primeira, é que a língua portuguesa tem duas ortografias oficiais: a lusitana e a brasileira. Lusitana, é bem castiço.

 

A segunda, é que a culpa desta lamentável e prejudicial situação se deve a uma reforma ortográfica que ocorreu em Portugal em 1911, não extensiva ao Brasil, e que foi por iniciativa da Academia Brasileira de Letras que em 1931 se começaram a tentar minimizar os inconvenientes.

 

Ficamos também a saber que a história dos sucessivos acordos ortográficos é antiga e tem sido sempre polémica.

 

A língua portuguesa era constituída em 1986 por um corpus de cerca de 110 000 palavras e o actual acordo consegue unificar aproximadamente 98% do vocabulário. O número de palavras abrangidas pela dupla grafia é de 0,5%, correspondente ao número mágico 575.

 

Segue-se uma explicação das opções tomadas nos casos conflituosos, o que permite inferir que quem redigiu o Acordo está bem informado e algumas das decisões chocantes tornam-se mais compreensíveis. Há um parágrafo bem explícito que transcrevo: “como é que uma criança de 6-7 anos pode compreender que em palavras como concepção, excepção, recepção, a consoante não articulada é um p, ao passo que em vocábulos como correcção, direcção, objecção, tal consoante é um c?”

 

Há porém uma questão fundamental que o Acordo, tanto o texto propriamente dito, como as notas explicativas, não esclarecem. De onde advém a necessidade do acordo?  Numa dada altura, é dito que a divergência ortográfica “tem sido considerada como largamente prejudicial para a unidade intercontinental do português e para o seu prestígio no Mundo” mas esta afirmação não está fundamentada. Mais à frente, refere o problema da “consulta dos dicionários, uma vez que as palavras em causa vêm em lugares diferentes da ordem alfabética, conforme apresentam ou não a consoante muda”, mas não parece que tal justifique esta revolução ortográfica.

 

Outra questão que não vale a pena abordar é a de quem é que escreve, e já agora, fala, correctamente? A língua evolui de forma natural, e ainda que possamos detestar ou simplesmente achar ridículo um determinado termo ou grafia, todos concordamos que, depois de descontadas algumas aberrações e estrangeirismos, nenhuma corrente tem mais autoridade que as outras. Aliás, noutro sítio que não neste texto, poderia demonstrar como certas formas hoje consideradas obsoletas e até incorrectas têm maior legitimidade histórica; um tema bem interessante e curioso.

 

Nesta altura, deveríamos estar em condições de finalmente emitir opiniões e conclusões sobre o AOLP.

 

Mas antes disso, acho que vale a pena relembrar que as palavras são entidades muito poderosas. Palavras podem fazer cair um Império, podem romper irreversivelmente invólucros sentimentais[5] e ferir tanto como espadas. As palavras, ditas ou escritas, mais do que as imagens, podem revelar a verdade e a verdade pode ser insuportável; a mentira não tanto. As palavras ligam afectivamente as pessoas, são elementos constituintes da nossa memória, permitem-nos comunicar com os nossos antepassados e dão-nos uma sensação de pertença e estabilidade neste mundo impermanente.

 

A língua de um povo transmite os seus valores de geração em geração e a ortografia cristaliza as suas idiossincrasias. Através das palavras, os homens podem exprimir o sublime e vislumbrar o transcendente.

 

A mitologia em geral, e a grega em particular, está recheada de histórias em que homens e deuses, imprudentemente, ousaram interferir na organização cósmica e natural, e arrependeram-se. As religiões também: no princípio era o Verbo, o Universo criado a partir da Palavra, era essa a intuição dos antigos, e depois, a harmonia do Paraíso quebrada pelo desejo do homem de controlar processos que estão para além da sua competência.

 

Estou obviamente a dramatizar e não se pode concluir que a ortografia da língua portuguesa não possa ser mudada por decreto, mas não tenho a certeza que a dimensão quase sagrada da língua tenha estado presente na mente de quem gizou o Acordo. Por outro lado, parece-me estarmos perante um objectivo impossível dada a referida relação entre ortografia e cultura, e esta não está certamente em processo de convergência entre os países que o assinaram.

 

Uma coisa sobre a qual talvez valha a pena reflectir, e que o AOLP não menciona, é que a reforma de 1911 produziu resultados efectivos e meritórios; será que tal se deve precisamente ao facto de esse objectivo de harmonização não ter estado presente?

 

Para terminar, um pormenor que não passa despercebido é a enorme quantidade de notas de rodapé referentes aos lapsos do texto oficial, corrigidos na versão a que tive acesso (que contempla a Rectificação n.º 19/91), e que, em parte, descredibilizam o Acordo e nos levam a questionar o respeito com que este assunto foi tratado.

 

 

Alberto Mesquita

30 de Março de 2010

 


[1] Ideia expressa em “L Antruido de las Palabras” de Francisco Niebro em Cebadeiros, ed. por Campo das Letras, 2002, link disponível em http://www.albertomesquita.net/am/moleskine/LAntruidodasPalabras.html

[2] Expressão extraída de http://bitaites.org/

[3] "St. Crispen's Day Speech" em Henry V de William Shakespeare

[4] Expressão usada na tradução brasileira de Jabberwocky, de Lewis Carroll, por Augusto de Campos

[5] Expressão mencionada numa exposição de fotografia, em Coimbra, na Casa da Cultura, e cujo autor irei tentar identificar.